Como dito no artigo anterior, a Ceia foi estabelecida pelo Senhor Jesus e celebrada por seus discípulos em um contexto de refeição literal. A idéia de se observar a Ceia do Senhor tomando suco de uva em um dedal de costura e comer pedacinhos insípidos de bolacha é algo totalmente estranho às Escrituras e à prática dos primeiros discípulos.
Piquenique no cemitério
Por que o formato da Ceia é tão importante? Porque o formato determina o espírito em que ela é celebrada. Quase dois milênios de tradição eclesiástica transformaram a Ceia em um solene ritual, em contraste com a prática dos primeiros discípulos que, ao celebrar a Ceia, estavam simplesmente compartilhando um banquete.
O pão e o vinho deveriam ser consumidos em um ambiente de alegria e descontração, não de tristeza e formalismo. Mas nos moldes atuais, “celebrar” a Ceia é algo tão contraditório quanto fazer um piquenique no cemitério.
O sentimento de um evangélico ao participar da Ceia é o mesmo de um católico na sexta-feira da Paixão: contemplam as chagas de Cristo com um espírito de penitência e comiseração. A tradição eclesiástica nos ensina que, ao tomar a Ceia, devemos reviver os horrores da cruz e, com tristeza, VELAR o Corpo de Cristo simbolizado pelo pão e pelo vinho. É como se estivéssemos assistindo ao filme de Mel Gibson – “A Paixão de Cristo” – todas as vezes em que provamos a ceia.
Mas será que era isso o que o Senhor tinha em mente quando instituiu a Ceia? Seria a intenção do Senhor que sua Igreja realizasse um velório por mês em memória à sua Pessoa?
O espírito da Igreja Primitiva
Particularmente, entendo que Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro, mas posso dizer que a Ceia de Natal é o evento que mais se aproxima da Ceia do Senhor no tocante ao formato e ao espírito em que ela era celebrada pelos primeiros discípulos: a Ceia de Natal, para grande parte dos cristãos, é uma ocasião em que as pessoas se reúnem em torno de uma mesa (repleta de comida) para celebrar o Senhor Jesus Cristo em um espírito de alegria, simplicidade, informalidade e desprovido de religiosidade. Mais do que um banquete, trata-se de uma celebração em família com um propósito espiritual. Este foi o ambiente em que a Ceia era celebrada em seus primórdios.
Devemos lembrar que Jesus estabeleceu a Ceia durante a Pessach , ou Páscoa (Lucas 22:7). A Páscoa judaica é um festival em que os judeus recordam e comemoram a libertação dos hebreus da escravidão do Egito e a consequente formação da nação de Israel, conforme narrado no livro de Êxodo. Desnecessário dizer que, para um judeu, a Pessach é uma festa, não é um funeral. Para um judeu, o sangue do cordeiro é sinônimo de vida e não de morte. Foi pelo sangue derramado e espalhado nos umbrais de suas portas que o anjo da morte se desviou de suas casas enquanto trazia juízo à nação do Egito.
A Páscoa judaica ainda é celebrada entre os judeus como uma festa que simboliza um pacto. De igual maneira, a Ceia do Senhor deve ser uma festa que simboliza um pacto: pelo Sangue de Cristo fomos libertos da escravidão do pecado e não seremos julgados com o mundo. Por seu sangue somos feitos novas criaturas e novos cidadãos desta Pátria Espiritual, que é o Reino de Deus.
Por que então observamos a Ceia como se fosse um funeral, como se ao provar do cálice e comer o pão estivéssemos uma vez mais matando o Filho de Deus?
A Eucaristia Protestante
Influenciados pela prática pagã de se oferecer sacrifícios em seus dias, os cristãos ante-nicenos já no início do segundo século haviam desenvolvido a ideia de que todas as vezes em que a Eucaristia era observada, o Corpo de Cristo estava sendo novamente oferecido em oblação. Eles entendiam que, após a congragração por meio da oração, o pão e o vinho passavam por um processo místico de “mudança de matéria” (transubstanciação). A partir deste momento, eles já não eram simplesmente o pão e o vinho, e sim a “Eucaristia” (do grego Εuχαριστία, que quer dizer “ação de graças”). A Eucaristia era a presença literal e substancial do Corpo do Senhor Jesus no pão e no vinho.1 Esta crença fez com que o pão e o vinho adquirissem um aspecto sagrado em si mesmos, o que deu a luz a todo tipo de misticismo e superstição em torno da Ceia do Senhor. Este é o transfundo de toda a solenidade litúrgica que envolve a Eucaristia católica.
A Reforma Protestante aboliu a supersticiosa doutrina da transubstanciação, mas a penumbra e o espírito fúnebre que permeiam o subconsciente protestante, na ocasião da Ceia, remetem à idéia católica de reviver o sacrifício de Cristo cada vez que tomamos o vinho e comemos o pão.
Os protestantes brasileiros desdenham dos crucifixos católicos que trazem um Cristo morto no madeiro, alegando que a “cruz protestante” está vazia – simbolizando a ressurreição do Messias. Os evangélicos criticam os católicos por contemplarem as chagas de Cristo de forma exageradamente piedosa, penitente e fúnebre. Os evangélicos dizem que não adoram a um Cristo morto e ensangüentado na cruz, mas a um Cristo vitorioso que venceu a morte e que nos deu vida. Curiosamente, no momento da Ceia, toda a retórica protestante desvanece, dando lugar à mesma prática católica medieval de se contemplar as chagas de Cristo com lástima e penitência, sem o devido discernimento daquilo que estas chagas fizeram por nós: elas foram o castigo que nos trouxe a paz – Is 53:5.
Conclusão
A ceia simbólica atualmente realizada em nossas igrejas elimina totalmente o aspecto fraternal da ordenança, transformando aquilo que deveria ser uma celebração familiar em um ritual fúnebre e exageradamente solene. O pudor a uma festa com abundância de alimentos, onde as pessoas literalmente confraternizam à medida que celebram o Corpo de Cristo, parte do conceito católico de que tal ambiente de festa profanaria a “Eucaristia” pela falta de reverência.
Não há dúvidas de que a memória do sacrifício de Cristo a nosso favor deve causar em nós um quebrantamento. Mas devemos discernir entre o quebrantamento de um inconverso que é confrontado com as chagas de Cristo, e o quebrantamento de um discípulo que experimenta o poder do Pacto de sangue que Cristo firmou na cruz conosco. Se em nossa conversão o sacrifício de Cristo nos causa um quebrantamento acompanhado de culpa e tristeza (“Ele sofreu e morreu por mim”), no decorrer de nossa caminhada cristã a memória das chagas do Senhor deve causar em nós um quebrantamento acompanhado de júbilo (como a de um escravo que recebe sua carta de alforria, ou a de um devedor cuja dívida é perdoada), pois aquele que toma de seu sangue e come de seu corpo tem a Vida em si (Jo 6:48-58).
A Ceia do Senhor é um ato profético da Vida de Cristo sendo recebida e compartilhada por aqueles que participam deste banquete espiritual. É um ato profético que aponta também para as Bodas do Cordeiro (Apocalipse 19:7-10). A Ceia do Senhor é a nossa Pessach. Jesus é o nosso Cordeiro Pascal. Seu sangue nos cobriu e nos livrou da morte. Sendo assim, devemos celebrar seu sacrifício em um ambiente de festa, com alegria e gratidão, não em luto e comiseração.
Continua na parte 3.
NOTA
[1] A Igreja romana ainda sustenta esta doutrina. Mais detalhes sobre o desenrolar desta crença e suas implicações no artigo “Trapalhadas Ante-Nicenas – Uma retrospectiva histórica da Ceia do Senhor“.
© Pão & Vinho
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